segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Escrevi pouco esse ano talvez por querer não afundar mais.
Eu pedi ajuda, e deu certo. Eu orei, e deu certo. Eu fiquei longe, e deu certo.
Eu só queria que você soubesse que eu pensei em você todos os dias desse ano. Alguns com raiva, outros com ternura, muitos com saudade... mas todos, todos os dias, sem exceção.
Eu quis poder te ajudar... eu tentei. Eu quis te ajudar mas daí eu percebi que quem precisava de ajuda era eu e no fim das contas eu consegui.

Consegui estar serena e com o coração aberto, coisa que eu não sentia há muito tempo. Consegui conhecer pessoas, me encantar, me envolver. Percebi que você não precisa tanto de mim quanto eu precisava de você, e fui seguindo.
Mesmo quando eu te mandava uma mensagem de whats e um segundo depois meu telefone tocava. Mesmo quando eu fingia que não era importante o que você me dizia. Mesmo quando você me ignorava... Eu estava ali, inteira.

Você ainda faz falta e eu não estou mentindo. Sinto a sua falta nas decisões práticas, nos detalhes, na astúcia. Sinto a falta de poder dividir meus sonhos com você, minhas angústias e minhas alegrias. Falta das discussões que você terminava quando fingia concordar com o meu ponto de vista só pra gente parar de brigar, das vezes que você compartilhava os seus medos comigo e de quando ficávamos horas conversando sem perceber o tempo passar.

Eu vou sempre me lembrar de você e você sempre vai lembrar de mim, não tem jeito. Vai ter sempre uma música, um perfume, um dia do ano e nós sempre estaremos conectados.

E eu queria sim ter você por perto, como amigo, como pessoa que fez e faz parte da minha vida.

Eu sei que você entra aqui! Então me liga pra gente ir tomar um café e rir das travessuras do destino.








sábado, 2 de agosto de 2014

A morte e as coisas que ainda quero fazer

Hoje eu acordei muito cedo pra dar aula. Cheguei em casa, comi alguma coisa e resolvi dormir um pouco. Já faz algum tempo que ouço diálogos descabidos antes de realmente pegar no sono... eu tento prestar atenção pra lembrar depois mas não consigo.
Hoje, meio acordada, meio dormindo, vi a morte de costas, indo embora e atravessando a parede do meu quarto.
Dormi e acordei algumas horas depois com aquela cena na cabeça e comecei a pensar que talvez ela estivesse vindo me buscar... mas porque ela estaria indo embora?
Eu não queria morrer agora.
Não queria ficar engasgada com todas as coisas que eu não disse por excesso de pudor, por pensar muito no amanhã, por orgulho...
Não queria morrer sem antes dizer para as pessoas que eu as perdoo e que entendo que tudo o que aconteceu faz parte de uma engrenagem, a da vida, e que as coisas estão sim evoluindo pra melhor.
Não queria morrer sem antes ter feito mais algumas loucuras, ter bebido mais alguns bons drink, sem ter viajado para pelo menos alguns dos lugares que eu quero ir, sem ter provado alguns sabores que ainda não provei...
Preciso ainda viver um grande amor, e gerar um filho, e voar de balão, e aprender sapateado, e conhecer Paris, e o Cristo, e Poços de Caldas e tantas coisas mais.
Por isso, Dona Morte, acho que a Senhora veio só verificar se eu ainda estava respirando, não é mesmo? Então, por favor, me deixe aqui resolvendo meus assuntos e volte daqui a muito tempo!

terça-feira, 15 de julho de 2014

O semáforo

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"Vai dar tempo" eu pensei e acelerei. Quando vi que não daria, freei o carro bruscamente e o cinto travou, machucando um pouco meu peito.
Estava irritado. As brigas com a minha namorada estavam cada vez mais frequentes e eu sentia que já não aguentava mais, tudo estava por um fio. Havíamos acabado de discutir muito, eu ainda estava sob o efeito da raiva e pra ajudar, teria que esperar os 25 eternos segundos do maldito semáforo.
Passei a mão na cabeça e num movimento natural, olhei pro lado. Qual foi o meu espanto ao ver que naquele carro estava você.
Eu não a via há mais de dois meses. Da última vez você me deu um daqueles beijinhos no rosto só por educação e praticamente me deixou falando sozinho.
Sua boca não parava de mexer e só fui perceber que você estava cantando quando deu uma dançadinha com a cabeça. Me lembrei de quando você monopolizava o aparelho de som do meu carro e trocava de cd como se só você estivesse no carro e eu fingia que estava bravo mas não, eu só queria te provocar, e aí você é tão desafinada e achava que estava cantando lindamente, e estava, pelo menos pra mim.
Você soltou os cabelos, deu uma olhadinha no espelho e ficou ainda mais linda. Deu uma ajeitada no batom.
Eu fiquei me perguntando onde você estava indo ou de onde estava voltando, maquiada e com o olhar empolgado de quem está de bem com a vida.
Olhou pra baixo e a luz do celular iluminou um pouco mais seu rosto. Depois de alguns segundos deu um sorrisinho e olhou preocupada para ver se o semáforo já estava aberto. Nesse mesmo instante ouvi alguém buzinando atrás de mim e percebi que o sinal estava verde. Quando olhei para o lado você já tinha saído sem sequer ter olhado pra mim.
O carro de trás buzinou mais uma vez e fiquei tão atrapalhado que meu carro morreu. Consegui liga-lo de novo, passei o semáforo, dei seta e encostei. O carro de trás deu uma parada, o cara olhou pra mim e fazendo um sinal com a mão, gritou "Tá maluco?". Eu não respondi.
Foram pouco menos de 25 segundos mas que me fizeram lembrar do quanto era bom estar com você, do quanto você consegue ser louca e instigante ao mesmo tempo e do quanto eu era feliz ao seu lado.
Peguei meu celular e teclei seu número mas não tive coragem de ligar. Não me senti no direito de te incomodar seja lá pra onde você estava indo, tão linda!
Eu só queria que você soubesse que eu sinto a sua falta

terça-feira, 24 de junho de 2014

O dia em que eu resolvi te matar.

Era um dia lindo, o céu azul estridente e sem nenhuma nuvem. Não fazia tanto calor como faz agora e uma brisa amena soprava de vez em quando.
Foi nesse dia lindo que eu resolvi te deixar.
Resolvi não, decidi. Decidi e ainda não voltei atrás. Digo ainda porque a vida é cheia de coisas que a gente não planeja e eu não sei como vou acordar amanhã, só sei que a crise está quase no fim.
Antes, por muito pouco eu já teria voltado atrás, por isso acho que dessa vez é real.
É que, sabe, eu tenho a mania de não terminar as coisas. Eu nunca tomo todo o café com leite, sempre fica um restinho, sempre fica algo pra colocar no lugar quando eu arrumo meu quarto, eu sempre tenho mais que uma janela aberta no meu computador e fico fazendo mil coisas nele pra não precisar chegar ao fim de nada. Eu deixo de ler o último capítulo de um livro se eu gostei muito dele e é claro que eu não terminei ainda com você.
Eu sempre acho que o último capítulo ainda não foi escrito e por isso fico pensando em como vai ser quando a gente se ver.
É engraçado que nesse momento eu estou digitando sem olhar pro teclado e eu te falava que sentia inveja de você porque eu não sabia fazer isso mas desculpa, eu sei.
Eu queria fazer você se sentir o melhor cara do mundo e às vezes me diminuía pra que isso acontecesse. E acabei acreditando tanto nisso que hoje eu acho que não sirvo pra você, mesmo sabendo que na verdade é o contrário, mesmo sabendo que nunca daria certo e que eu também mereço ser feliz.
Agora me peguei olhando as outras duas abas abertas da internet, com uma mão no mouse a a outra na boca como você costuma fazer. Me dá medo ter as suas manias, parece que eu sou meio você e quando eu lembro que não me dá um vazio tão grande, um nó no peito. A sua falta no meu dia a dia tem se tornado cada vez mais palpável.
Ganhei um sabonete que me lembra um dos teus perfumes. Coloquei ele na pia e todas as vezes que alguém usa eu me lembro de você usando ele, e daquele lugar, e daquela conversa, e dos olhos.
Eu me lembro de você esparramado no sofá da minha casa, tão a vontade como se fosse sua. E das suas mãos nas minhas por alguns segundos porque você não gosta de ficar na mesma posição por muito tempo.
Aí eu lembro de todas as vezes que me fez chorar e depois pediu desculpas, de todas as crises de ansiedade que tive perto de você e do último beijo... naquele dia tudo estava bem. Naquela sexta a gente prometeu ficar juntos na terça e aí era um domingo de céu azul estridente quando eu decidi que você estava fora dos meus planos.
É muito pesado tudo o que você quer que eu carregue. Todos os dias de céu azul estridente que você não vai passar ao meu lado. Todas as minhas manias que você não vai adotar pra você e todas as vezes que você não vai se fingir de bobo pra eu me sentir melhor, você nunca faria isso por mim.
Eu decidi enterrar você vivo. Não, calma. Não seu corpo, de fato. Decidi enterrar o você que eu criei na minha cabeça cheia de cachos. Eu criei uma pessoa que não é você, é só muito parecido. Eu fui pegando todas as coisas que você me dizia e acreditando nelas e você foi ficando tão perfeito.
O você que eu criei sentia muito a minha falta, mas muito mesmo. E ele vinha todas as vezes que eu chamava. Ele pensava em mim desde quando acordava até a hora de dormir e tinha sonhos lindos da gente juntos num gramado cheio de sombras de árvores, flores caídas pelo chão e a torre Eiffel lá no fundo.
Esse você me falava só a verdade, ele não mentia. E era tão bom olhar nos olhos dele e acreditar em tudo o que ele me dizia, desde as coisas pequenas do dia a dia até as grandes conquistas.
Ele queria tomar um vinho e tocar violão pra mim. Ele queria ir pra praia e pra São Paulo jantar num restaurante chique. Ele queria aparecer na minha festa de aniversário, me dar um presente e um beijo na boca. Ele queria dançar comigo quando ninguém estivesse olhando e me falar o quanto eu estava linda mesmo sem maquiagem.
Ele queria tantas coisas, as mesmas que eu e desde que ele foi embora junto com você, eu fiquei aqui esperando que um dia você volte.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Sobre a menina que queria virar estrela

_Vem, não vai machucar!
_Mas eu não quero mais, não vou conseguir.
_Vai sim! Pára de graça, eu te ajudo.
_Não precisa, não quero mais. Faz você, eu fico vendo.

E era sempre assim. A menina que se encantava vendo as outras pessoas virando estrela. A mão que de repente se chocava com o chão, primeiro uma, depois a outra; as pernas se abriam lá no alto, tão alto que pareciam tocar o céu Quando a perna chegava no chão, a menina que só olhava costumava respirar aliviada e orgulhosa da irmão que sempre foi tão mais corajosa que ela.

_Vamos ali na grama, não vai te machucar.
_Meu braço não me aguenta, vou cair de cabeça no chão.
_Aguenta sim, é só uma estrelinha.
_Pára, vai você! Olha, se você não parar eu vou lá pra dentro ver desenho e não brinco mais com você nunca mais.
_Tá, vamos brincar de outra coisa então.

Essa última frase acabou se tornando corriqueira na vida dessa menina. Sempre que algo parecia ser muito difícil ela resolvia brincar de outra coisa e realmente se convencia de que era melhor assim.

Ela não sabe dizer ao certo se foi em um momento específico ou em vários. Talvez pequenas doses de coragem e pessoas completamente inspiradoras foram a transformando em uma mulher que percebeu que uma hora ou outra ela precisara enfrentar algumas coisas para se tornar a pessoa em que ela sonhava em ser. Pegou seus medos, suas frustrações, sua falta de técnica e de sorte, juntou tudo numa mala dessas bem grandes e difíceis de serem carregadas, comprou uma passagem com moedas e notas amassadas e partiu.

No meio do caminho foi encontrando pessoas incríveis e que também carregavam malas, algumas maiores, outras menores mas todos seguiam o mesmo rumo.

Veio uma vontade incontrolável de dentro do seu coração e ela gritou:

_ALGUÉM QUER VIRAR ESTRELINHA?

Algumas pessoas olharam estranho para ela, com desconfiança. Já outras imediatamente começaram a fazer aquele movimento tão admirado e perigoso.

Ela começou a pelo menos tentar. Se sentiu tão livre e tão feliz. Feliz por ela, pela tentativa mesmo que frustrada, feliz por ver algumas estrelas lindamente alcançando o céu e outras, como ela, apenas tentando, se conhecendo e se divertindo. Sentiu alguém a puxando pelo braço e dizendo:

_Vamos ali na grama, não vai machucar, eu juro!

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Trecho de "Carta a D. - História de um amor", de André Gorz

Você está para fazer oitenta e dois anos. Encolheu seis centímetros, não pesa mais do que quarenta e cinco quilos e continua bela, graciosa e desejável. Já faz cinqüenta e oito anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca. De novo, carrego no fundo do meu peito um vazio devorador que somente o calor do seu corpo contra o meu é capaz de preencher.

Eu só preciso lhe dizer de novo essas coisas simples antes de abordar questões que, não faz muito tempo, têm me atormentado. Por que você está tão pouco presente no que escrevi, se a nossa união é o que existe de mais importante na minha vida? Por que, em Le Traître, passei uma falsa imagem de você, que a desfigura? Esse livro deveria mostrar que a minha relação com você foi a reviravolta decisiva que me permitiu desejar viver.

Por que, então, deixar de fora essa maravilhosa história de amor que nós tínhamos começado a viver sete anos antes? Por que eu não disse o que me fascinou em você? Por que eu a apresentei como uma coitadinha, "que não conhecia ninguém, não falava uma palavra de francês e que sem mim teria se destruído", se você tinha o seu círculo de amigos, fazia parte de um grupo de teatro de Lausanne e era esperada na Inglaterra por um homem determinado a se casar com você?

Na verdade, não explorei em profundidade aquilo a que me propunha ao escrever Le Traître. Para mim, ainda restam muitas questões a serem compreendidas e esclarecidas. Preciso reconstituir a história do nosso amor para apreender todo o seu significado. Ela foi o que permitiu que nos tornássemos o que somos; um pelo outro, um para o outro. Eu lhe escrevo para entender o que vivi, o que vivemos juntos.

Nossa história começou maravilhosamente, quase um amor à primeira vista. No dia em que nos encontramos, você estava acompanhada de três homens que pretendiam jogar pôquer com você. Você tinha cabelos auburn abundantes, a pele nacarada e a voz aguda das inglesas.

Tinha acabado de chegar da Inglaterra, e cada um dos três homens tentava, num inglês sofrível, captar a sua atenção. Você se mantinha soberana, intraduzivelmente witty, bela feito um sonho. Quando nossos olhares se cruzaram, eu pensei: "Não tenho chance nenhuma com ela". E logo soube que o nosso anfitrião já a havia prevenido: "He is an Austrian Jew. Totally devoid of interest".

Um mês depois cruzei com você na rua, fascinado por seus passos de dançarina. Depois, numa noite, por acaso, eu a vi de longe, saindo do trabalho e descendo a rua. Corri para alcançá-la. Você andava rápido. Tinha nevado. O chuvisco fazia cachos nos seus cabelos. Sem pôr muita fé, eu a convidei para dançar. Você simplesmente disse sim, why not. Era 23 de outubro de 1947.

Meu inglês era desajeitado, mas passável. Tinha se enriquecido graças a dois romances americanos que eu acabara de traduzir para a editora Marguerat. Durante essa nossa primeira saída, percebi que você havia lido um ito, antes e depois da guerra: Virginia Woolf, George Eliot, Tolstói, Platão...

Falamos de política britânica, das diferentes correntes dentro do Partido Trabalhista. De imediato, você já sabia distinguir entre o que é acessório e o que é essencial. Diante de um problema complexo, a decisão a tomar sempre lhe parecia óbvia. Você tinha uma confiança inabalável na justeza dos seus julgamentos.

De onde você tirava essa segurança? E, no entanto, você também teve pais separados; deixou-os cedo, um depois do outro; nos últimos anos da guerra, morou sozinha com Tabby, o seu gato, e dividia com ele a sua comida racionada. E, por fim, saiu do seu país para explorar outros mundos. Em que poderia lhe interessar um Austrian Jew sem um tostão?

Eu não entendia. Não sabia que ligações invisíveis se teciam entre nós. Você não gostava de falar do seu passado. Pouco a pouco, compreenderei que experiência fundadora nos tornou subitamente próximos um do outro.

Nos encontramos de novo. Fomos dançar mais uma vez. Vimos juntos Le Diable au corps, com Gérard Philipe. Há no filme uma seqüência em que a heroína pede ao sommelier para trocar uma garrafa de vinho já aberta e bem consumida porque, segundo ela, dava para sentir o gosto da rolha. Tentamos reeditar essa manobra numa boate, e o sommelier, depois de verificar, contestou o diagnóstico. Diante de nossa insistência, ele nos mandou às favas, com muita determinação: "Nunca mais ponham os pés aqui!". Fiquei espantado com o seu sangue-frio e a sua sem-cerimônia. Pensei comigo mesmo: "Fomos feitos para nos entendermos". Depois da terceira ou quarta saída, eu afinal beijei você.

Não tínhamos pressa. Eu despi o seu corpo com cautela. Descobri, miraculosa coincidência do real com o imaginário, a Vênus de Milo tornada carne. O brilho nacarado do pescoço iluminava o seu rosto. Mudo, contemplei longamente esse milagre de vigor e de doçura.

Compreendi com você que o prazer não é algo que se tome ou que se dê. Ele é um jeito de dar-se e de pedir ao outro a doação de si. Nós nos doamos inteiramente um ao outro.

Durante as semanas que se seguiram, nos reencontramos quase todas as noites. Você dividiu comigo o velho sofazinho afundado que me servia de cama. Ele tinha apenas sessenta centímetros de largura, e nós dormíamos apertados, um contra o outro. Além do sofazinho, meu quarto só tinha uma estante de livros feita de tábuas e tijolos, uma mesa enorme, atulhada de papéis, uma cadeira e um fogareiro. Você não se espantava com o meu cenobitismo. Também não me espantava que você o aceitasse.

Antes de conhecê-la, eu nunca tinha passado mais de duas horas com uma moça sem ficar entediado e sem deixá-la saber que eu me sentia assim. O que me cativava é que você me dava acesso a outro mundo. Os valores que dominaram a minha infância não existiam nele.

Esse mundo me encantava. Eu podia escapar ao entrar nele, sem obrigações nem pertencimento. Com você, eu estava em outro lugar; um lugar estrangeiro, estrangeiro a mim mesmo. Você me dava acesso a uma dimensão de alteridade suplementar - a mim, que sempre rejeitei toda identidade e juntei uma identidade na outra, sem que nenhuma fosse realmente a minha. Falando com você em inglês, eu fazia minha a sua língua. Até hoje continuo a me dirigir a você em inglês, mesmo quando você responde em francês. O inglês, que eu conhecia principalmente por você e pelos livros, desde o início foi para mim uma língua particular que preservava a nossa intimidade contra a irrupção das normas sociais circundantes. Eu tinha a impressão de construir com você um mundo protegido e protetor.

A coisa não teria sido possível se você tivesse um sentimento forte de pertencimento nacional, de enraizamento na cultura britânica. Mas não. Você mantinha, em relação a tudo o que é british, uma distância crítica que não excluía a cumplicidade com o que lhe é familiar. Eu dizia que você era uma export only, ou seja, um desses produtos reservados só para exportação, não encontráveis nem na própria Grã-Bretanha.

Nós nos interessamos passionalmente pelo resultado das eleições na Grã-Bretanha, mas só porque o que estava em jogo era o futuro do socialismo, não o do Reino Unido. A pior injúria que alguém poderia lhe fazer era explicar pelo patriotismo o partido que você tomava.

Disso eu ainda teria bem mais tarde uma prova, durante a invasão das Malvinas pelas forças argentinas. A um ilustre visitante, que pretendia explicar pelo patriotismo o partido que você havia tomado, você respondeu com rudeza que só os imbecis não conseguiam ver que a Argentina levava aquela guerra adiante para lustrar o brasão de uma execrável ditadura militar e fascista, da qual, por fim, a vitória britânica precipitaria o desmoronamento.

Mas estou antecipando as coisas. Durante aquelas primeiras semanas, encantava-me a liberdade que você manifestava em relação à sua cultura de origem, mas também a substância dessa cultura, tal como ela lhe foi transmitida quando pequena. Uma certa maneira de zombar das provações mais sérias; um pudor travestido de humor, e mais particularmente as suas nursery rimes ferozmente non-sensical e sabiamente ritmadas. Por exemplo: "Three blind mice/ See how they run/ They all run after the farmer's wife/ Who cut off their tails with a carving knife/ Did you ever see such fun in your life/ as three blind mice?".

Eu queria que você me contasse a sua infância em sua realidade trivial. Eu soube que você cresceu na casa do seu padrinho, uma casa na praia, com jardim; com o Jock, o seu cachorro, que enterrava ossos nos canteiros e depois não mais conseguia encontrá-los; soube que seu padrinho tinha um receptor de rádio cujas pilhas precisavam ser recarregadas toda semana. Soube que você costumava quebrar o eixo do seu triciclo descendo o meio-fio sem se levantar; que na escola você resolveu escrever com a mão esquerda, e se sentou sobre as duas mãos, desafiando a professora que insistia em forçá-la a escrever com a direita. Seu padrinho, que tinha autoridade, falou que a professora era uma imbecil e passou-lhe uma descompostura. Compreendi então que o espírito da seriedade e o respeito à autoridade seriam sempre estranhos a você.

Mas nada disso dá conta da ligação invisível pela qual nós nos sentimos unidos desde o início. Por mais que tivéssemos sido profundamente diferentes, mas eu não deixava de sentir que alguma coisa fundamental era comum a nós, um tipo de ferida original - há pouco eu falava de "experiência fundadora": a experiência da insegurança.

A natureza desta não era a mesma para você e para mim. Não importa: para ambos, ela significava que não tínhamos um lugar assegurado no mundo, e só teríamos aquele que fizéssemos para nós. Nós tínhamos de assumir a nossa autonomia, e eu descobriria em seguida que você estava muito mais preparada para isso do que eu.

Trecho de "Carta a D. - História de um amor", de André Gorz